Neste dia em que o Nobel da Literatura Portuguesa faria 91 anos, a BE deixa o início do seu belíssimo discurso perante a Real Academia Sueca, em Estocolmo. Leiam-no na íntegra.
« De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz
Terça-feira, 8 de Dezembro de 1998
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida
não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um
novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o
campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se
alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da
pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da
aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho
e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando
o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa,
iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama.
Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do
enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom
carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim
procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era
proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não
aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô
Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal
anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à
grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço
comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas
das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho,
panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de
servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois
da ceia, meu avô me disse: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da
figueira”. Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior,
por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa,
a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos
depois viria a conhecer e a saber o que significava… No meio da paz nocturna,
entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente,
escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um
rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da
Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia.
Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que
o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares,
mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um
incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que
suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia
de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a
resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que
ele calculadamente metia no relato: “E depois?”. Talvez repetisse as histórias
para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer
com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem
será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a
ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me
despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus
animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço
(na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas
ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se
encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô,
punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me
se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias
do avô, ela sempre me tranquilizava: “Não faças caso, em sonhos não há
firmeza”. Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito
sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da
figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento
apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se
tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó,
afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que,
estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia
sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse
dito estas palavras: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”.
Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e
contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final,
a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza
revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido
alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como
se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só
porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e
contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi
despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e
chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre
este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha
sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura
invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que
eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a
maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com
o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de
um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do
instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu
passar a viver. (...).»
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